O COSTUME, ESSE IMBATÍVEL

O COSTUME, ESSE IMBATÍVEL
                         Net 7 Mares
Há um inusitado ponto comum entre o império microsoftiano — se me permitem o neologismo — e o governo comunista neocapitalista chinês. Vejamo-lo:

Há relativo pouco tempo, o totalitário governo semicomunista chinês decidiu, via decreto, enfrentar a mania que os chineses tem de escarrar em via pública, prática que é moda por lá. O povo chinês acha que cuspir a torto e a direito por onde passa faz algum tipo de bem. Já Bill Gates, o supremo mandatário do universo informático, tendo chegado à conclusão de que a proteção chave serial era inútil para impedir a copiagem do seu principal programa, decidiu implementar um mecanismo anti-cópias no Vista, que também resultou em vão. Criou, para o Seven, versão mais recente, barreira mais fechada contra cópias, e o que a gente vê, hoje, nos sites de downloads gratuitos são múltiplas ofertas de Seven "autenticado".  O ponto comum entre o governo chinês e a Microsoft é a luta inútil contra o costume.

Não sei das penalidades que foram estabelecidas para os "transgressores" do decreto chinês, mas, a julgar que foram impostas por um governo mão-de-ferro, hão de ter sido penalidades pesadas.  E, aí, pergunta-se: a lei chinesa emplacou? Resposta: não. E por que não? Porque não há lei capaz de dar fim a um costume. Evidente que cuspir na rua é, para nós, os ocidentais, uma prática abominável; mas o chinês não pensa assim.

O governo chino luta contra as cusparadas dos seus cidadãos; tio Gates, em combater a disseminada prática de copiagem do seu Windows; e eu podia terminar a crônica aqui, vaticinando que ambos haverão de dar com a cara no chão nessa tentativa de alterar o costume; mas como o tema desanda para conseqüências revolucionárias, acho que vale a pena alongar-me um pouco.

Em se tratando do segmento música, o costume de copiar arquivos de som já vem desde os tempos dos cartuchos, aqueles dispositivos que antecederam as fitas K-7. Certamente, por causa da má qualidade do som que saía nas cópias em K-7, ninguém da indústria fonográfica esquentou muito com a prática, e esta veio se prolongando através do tempo. Pois bem... Com o advento da Internet e do MP3, a prática, alicerçada no fator tempo, virou costume, e, aí, tornou-se imbatível. Por esse caminho, logo apareceu o Napster, o primeiro programa on-line de troca de arquivos de som. A lei caiu em cima e, depois de longa luta judicial, deram fim ao programa. Em seguida, veio o Kazaa, que acabou tendo o mesmo fim. Em seguida, vieram o Shareaza, o eDonkey2000, o Piollet, o Emule... todos, envolvidos no mesmo “crime” que era praticado pelo Napster e Kazaa, e ninguém mais falou em processo judicial. Neste aspecto, o costume de copiar arquivos MP3 virou uma cabeça de Medusa: a cada serpente que é removida do couro cabeludo, nascem outras, multiplicadas.

Hoje, ninguém mais abre programa P2P para buscar músicas. Basta entrar no Youtube, procurar a música que quiser e, com o gratuito programa aTube Catcher, baixá-la à sua coleção de MP3. No 4Shared, é mais fácil, porque não precisa de programa algum auxiliar. É só clicar em "Download", aguardar 20 segundos e... "Voilà".

Um outro aspecto também salta aos olhos e merece ser apreciado: o dos benefícios e malefícios, que, de modo geral, estão presentes e qualquer costume. No caso das músicas, antes do advento daqueles cartuchos, tínhamos (e ainda temos), por um lado, artistas a ganharem rios de   > >
dinheiro com  a produção de discos,  enquanto que, pelo lado oposto, os consumidores tinham que se contentar com duas ou três músicas de qualidade, vez que o resto do CD é composto de puro lixo. O povo, por seguidas décadas, teve que engolir essa salada indigesta que lhe era oferecida pelos poderosos da indústria fonográfica no danoso costume de vender dez frutas podres sob duas sadias . Nesse quadro, uns poucos, os artistas, eram os beneficiados, enquanto milhões eram sacaneados, configurando essa moeda perversa, onde, numa das faces, poucos ganham muito, e, na outra, muitos, pagando caro, ganham quase nada.

Pois bem; com a chegada do MP3 e das facilidades vistas acima, essa história mudou, vez que o povo internauta, agora, pode montar o seu álbum de músicas só com o filé e sem gastar um centavo. E os artistas? Não tendo mais ninguém a comprar as suas bolachas, como é que ficarão? Terão que sair mundo afora, distribuindo gratuitamente os seus discos, tendo o cuidado de colocar, nestes, produções caprichadas, para, a partir da propaganda, trazer o povo às suas apresentações. Por aí, acaba aquele enche-lingüiça que ainda temos nos CDs, onde, numa coletânea de 12 músicas, só uma ou duas prestam. Eis aí a suprema vingança do costume.

Mas... e os artistas? Vão viver do quê? Vão viver do que conseguirem auferir nas apresentações ao vivo. Voltarão, portanto, aos tempos de antanho, quando, não havendo tecnologia de gravação, ganhavam a vida, cantando nas rádios e nos shows. Antes do MP3, faziam duas composições, misturavam-nas com generosas porções de porcarias e ganhavam fortunas; agora, se não capricharem nos discos-brindes que serão distribuídos de graça, ninguém irá aos seus shows.

Enfim, a despeito de leis reguladoras ou decretos, os chineses seguirão com as suas cusparadas públicas; e o mundo continuará a escarrar sobre o suposto direito daqueles que querem vender a sua arte, estabelecendo limites ao comprador, quando a tradição determina que quem compra algo tem o direito de fazer o que quiser do produto comprado.  Azar de quem vendeu barato.

De resto, se tudo isso não basta para mostrar que o hábito da cópia é imbatível, vai mais uma: já existe na legislação brasileira a jurisprudência do costume (veja no Google), e o dicionário do Houaiss sacramenta-o na definição clara: "jurisprudência que se fundamenta na prática, no uso em detrimento da lei escrita". Ora! Faz pleno sentido a existência dessa figura jurídica, vez que a lei é feita, baseada no costume. Pode-se mesmo dizer que, por conclusão natural, a lei ideal é aquela que é feita para defender o costume, e não para combatê-lo. O costume, portanto, prevalece sobre a lei. E mais: se formos falar de conduta ética, temos que tomar, por base, que ético é o que traz benefícios à maioria, e não a uma minoria, cujos membros, até há pouco tempo, podiam, com duas músicas nas paradas de sucessos, encomendar o iate para os finais de semana. 

    Sei não, mas acho que o Chico Buarque, quando nos apareceu com um "Vai trabalhar, vagabundo!" naquela sua conhecida canção, estava já pressagiando, no refrão, alguma desgraça contra a sua classe profissional e, por natural extensão, contra si mesmo.

    Net 7 Mares.
 (Conforme determina o costume, a presente crônica, bem como as futuras, estão liberadas para repasse).

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